Desvendando o Código da Vida III - Insônia, do latim, "phalta dae sonnus".
Por Fernanda Patelli
Logo de cara, na primeira página: "Para Saulo, que honrará nossa Brodowski, lembrança afetuosa do Portinari". Meu deus-da-comida-chinesa-do-céu! O cara escreve um livro e, logo de cara, dá um jeito de homenagear a si mesmo! E o pior: tenta arrebanhar a simpatia do leitor se vinculando a um artista conhecido e reconhecido por seu talento. Portinari, agradeceria muitíssimo se enviasse seus flagelados para baterem a carteira de Saulo durante a noite e me devolverem meus R$40,41.
Engulo em seco e viro a página. Noto que a tendência é piorar: Jô Soares é co-autor do coiso. Agora sim, confirmo: recuso-me a chamar essa coisa de livro.
Primeiro capítulo.
"O sigilo profissional impõe aos advogados o dever do silêncio eterno (...) Resolvi contornar essa regra ética, sem quebrá-la. Neste livro, narro um desses casos, trocando os nomes das pessoas." Não é genial? Não sei se isso se encaixa no quesito "maestria com que utiliza os recursos literários" ou se no quesito "desobedecendo todas as obviedades da estrutura tradicional das biografias", mas, sem dúvidas mostra que Saulo não está empenhado em contornar qualquer mediocridade literária.
"Advogados trabalhando como detetives. Batalhas de inteligência, raciocínio, jogos de deduções. Enigmas que atormentam os profissionais do Direito, mas eles sabem como resolvê-los." Até eu sei como resolver: foi o Coronel Mostarda, na sala de estar, com o candelabro!
"Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais." "Advogados! Esses sim são fiéis." Eis um slogam para a próxima campanha eleitoral. Já imagino a OAB distribuindo santinhos nas portas das igrejas e cadeias. Já historiadores não merecem a mínima confiaça. Apedrejemos os infiéis sem medo, parece que nosso futuro ex-presidente fará apelos emocionais de toda sorte em troca de popularidade infinita. Caro professor Bosi, cuide-se. instale agora mesmo seu bunker anti-pedras.
"Agora elucido: não pedi a nenhum dos meus amigos para redigir prefácio a este livro. Por quê?" Duvidas, dúvidas, muitas dúvidas corróem a alma que não tenho... Advogados têm amigos? Mais um slogan para adesivo: "advogados são amigos, não comida".
"Minha secretária, nervosa, dissera pelo telefone que havia chegado um homem desejando consultar-me. Agitado, inquieto, visivelmente perturbado, de boa aparência, bem trajado, espalhou pânico no escritório. Ameaçou suicidar-se, caso eu não o atendesse. Não deu outra explicação. Sentou-se na sala de espera e lá permaneceu, aguardando que eu chegasse para atendê-lo. (...) Não aceitou café nem quis ler jornal. Minha secretária estava apavorada." Eu também me apavoraria se estivesse diante de um suicida que não quer um café. Na próxima vez em que quiser tentar o suicídio, vou anotar aqui que devo pedir um cappuccino para a secretária e lhe cobrar o jornal do dia.
"Na estrada, o guarda rodoviário fez sinal para eu parar.(...) Estendi-lhe os documentos do carro. — Não precisa — disse ele, olhando para o banco de trás, como se estivesse procurando alguém escondido. — Não precisa? O senhor me pára e não vai verificar meus documentos?" Curioso. Todo mundo que eu conheço agradeceria a "gentileza" de ter sido parado, elogiaria a eficiência do trabalho policial e seguiria em frente, mantendo no máximo metade da velocidade permitida. Aliás, eu não queria dizer nada, mas essa ânsia por mostrar os "documentos" a um policial não me parece muito comum entre homens heterossexuais.
E segue-se um longo diálogo com o tal guarda... Saulo tem uma Mercedes, é um advogado ocupado e nega ter celular. O policial diz tê-lo visto ao celular enquanto dirigia. É das poucas vezes que acho que um policial tem razão.
"Arranquei, sentindo-me um pouco esperto demais e feliz com o meu celular, que não tocou durante a conversa com o guarda. Aparelho moderno. É instalado em um compartimento inacessível do carro, mas controlado por botões no volante." Algum advogado, por favor, me responda: quanto tempo um crime desses leva para prescrever? Saulo seria um dos evitáveis pelo "ficha-limpa", caso fosse candidato?
"O meu telefone móvel, de alta tecnologia, ainda tinha esta vantagem: era invisível." Meu amigo de infância também era invisível e, nem por isso, vejo motivo para me gabar dessa palhaçada.
Em resumo: no primeiro capítulo aprendemos que: há um suicida num escritório de advocacia que, por algum motivo sobrenatural, se recusa a ler o jornal. Há um advogado malandro (nada de sobrenatural aqui) na estrada com um telefone invísivel. Partindo do telefone invisível, Saulo arranja um gancho para escrever sobre a internet e sobre um japonês que deseja barrar o avanço da China. Diz que a China tem um PIB espantoso. A China tem áreas muito miseráveis. A China é um país de ideologia comunista com economia capitalista. A China produz celulares. Saulo Ramos tem um telefone celular e está burlando a lei! Tudo perfeitamente ligado, tal como a minha lista de compras.
Agora, que surpresa! Em vez de continuar contando a história do suicida, no segundo capítulo, saberemos tudo sobre a chegada do primeiro telefone em Cravinhos! O número da casa de Saulo era 45. Corto minhas unhas do pé se ele não for candidato pelo PSDB nas próximas eleições! Também ficamos sabendo que, em Cravinhos, havia uma barbearia cujo barbeiro, Salomão, escalpelava seus clientes enquanto recitava poemas. “Navio Negreiro”, de Castro Alves é a recordação de Saulo. Já, seu agradecimento, deveria ser reconhecer que Salomão não leu Plínio Marcos e nada recitou em voz alta de “Navalha na carne”.
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